sábado, 29 de dezembro de 2012

Inspirado em histórias das reuniões particulares nos festejos de fim de ano. Eis "Fino trato"


Quase cinco e meia da manhã. Dia 28. Dezembro efervescente de ano de iras. Ele sabia disso. Sua primeira noite com seu filho que, desde agosto, não via. Minto, narrador entristecido que sou, desde julho, quando das férias escolares...
Em fino trato, a última linha tênue, alva e ardilosa do entorpecente...
Última fileira de prazer, um cheiro de café da cozinha. Tiro certeiro, alma lavada. No entanto, a picardia e a euforia do prazer da presença familiar eram de tempos já contados.
O corpo fechado estava, somava os contras, os erros e pagamentos morais – grosserias, intempéries e palavras malfadadas o assombravam, feito morcegos de Anjos que são. Noves fora nada e resumo da vida: ano ruim, mas seria um prelúdio – o violino de Piazolla rasgou-se repentinamente – de desfecho ruim?
Águas salgadas, champanhe ao mar e pulos de ondinhas não sanam as feridas das garras dos cérberos da alma.
Dezembro de veraneio, noites azuladas de dezembro efervescente.
E manhã sempre vem para clarear e corrigir erros, lúcido analisava consigo, enquanto deslizava o suco ácido pela garganta.
O filho na cama, esparramado como criança dorme: pouca beleza na vida de homens como ele, devaneiou. O cheiro de café , para esclarecer as razões.
Lembrou de versos perdidos e passagens de canções que lhe marcaram. ‘Você sai da favela, mas a favela não sai de você’, algo assim, rindo, sussurava, encostado na parede do muro, cercando as cores da virada da madrugada.
Versos perdidos. Interessante dubiedade, denotando uma marca da preconceituosa era da tecnocracia em que vivemos: ser favelado, status condicional pejorativo (sociedade é rançosa, manteiga ardida) em que descondicionados economicamente, momentaneamente e até mesmo culturalmente sob olhares, vulperinos, de supostas elites? Seria assim, tão assim, genericamente uma fachada de exclusão?
Um trago no cigarro para o primeiro clarão. Um trago do café quente para o amanhecer de um dezembro (efervescente e motivador).
Por outro lado, percorrendo a fumaça, um dos últimos cigarros do maço, calculava os dados num outro viés: ser favelado não seria também um estado cultural (ele bem sabia disso – e pequenos relampejos de quando morenava nas ruas, terra de verão anual, vendendo apostilas de concursos públicos em praças, bancos e beiradas de lojas), em formação contínua, prolongada, na busca da serenidade da justiça – ser observador, ser sagaz, ser humilde (fraco jamais), ser justo com os outros (tão próximos).
Dinheiro: produto inventado para coordenar os miseráveis, e ria, lembrando de frases genéricas e prontas. Prontas, não inúteis.
Ano ruim, muito ruim, mais um trago, mais um trago. O dia estava já pronto, o pão quente saía do forno nas padarias, salivava na visão e já o gosto em sua boca. Onde estavam as chaves do carro?
O filho ainda dormia – por que os filhos dormem assim, ternamente? -, as malas prontas, sob o sofá. Tinha tempo ainda para recuperar o cansaço da noite, solitariamente, consigo.
Ano ruim? Sim...
Era preciso reinventar-se! Ser favelado não seria, pois, isso: sobrevivendo, acorrentando medos, angústias e vencendo-se, sempre, para além?
O cansaço chegava. O braço estendeu-se sobre a sua criança.
O seu – e, dessa vez, oprobriamente, tão seu – ano novo começava ali.


Nenhum comentário:

Postar um comentário